Table Of ContentMARIA MANUEL BAPTISTA (ORG.)
Género e Performance
T E X T O S E S S E N C I A I S 1
TEXTOSDE:
bell hooks
Christine Delphy
Donna Haraway
Gayatri Spivak
Hélène Cixous
Judith Butler
Luce Irigaray
María Lugones
Monique Wittig
Ochy Curiel
Rosi Braidotti
Simone de Beauvoir
MARIA MANUEL BAPTISTA (ORG.)
Género e Performance
T E X T O S E S S E N C I A I S 1
TEXTOSDE:
bell hooks
Christine Delphy
Donna Haraway
Gayatri Spivak
Hélène Cixous
Judith Butler
Luce Irigaray
María Lugones
Monique Wittig
Ochy Curiel
Rosi Braidotti
Simone de Beauvoir
[Ficha Técnica]
Título
Género e Performance — Textos essenciais Vol. I
Organização
Maria Manuel Baptista
Coordenação Editorial
Mafalda Lalanda e Fernanda de Castro
Capa
Grácio Editor
Design gráfico e paginação
Grácio Editor
1ª edição em novembro de 2018
ISBN: 978-989-54215-2-7
© Grácio Editor
Travessa da Vila União,
n.º 16, 7.o drt
3030-217 COIMBRA
Telef.: 239 084 370
e-mail: [email protected]
sítio: www.ruigracio.com
Reservados todos os direitos
Esta obra foi financiada por fundos nacionais através da FCT – Fundação
para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto UID/ELT/04188/2013.
Índice
Prefácio
Gisberta: uma vida que conta...........................................................7
Maria Manuel Baptista
Violência, Luto, Política....................................................................21
Judith Butler
Feminilidade: uma armadilha........................................................53
Simone de Beauvoir
Este sexo que não é um....................................................................61
Luce Irigaray
O sexo ou a cabeça?...........................................................................71
Hélène Cixous
A marca do género.............................................................................93
Monique Wittig
Três textos de mulheres e uma crítica ao imperialismo.........105
Gayatri Chakravorty Spivak
Então, quando nos tornaremos mulheres?...............................145
Luce Irigaray
Que idade tens?..................................................................................149
Luce Irigaray
O preço das palavras.......................................................................155
Luce Irigaray
Femininismo: uma política transformacional..........................167
bell hooks
A biopolítica dos corpos pós-modernos:
determinações do eu no discurso do sistema imunitário......179
Donna Haraway
Pensar o género: problemas e resistência.................................197
Christine Delphy
Género, raça, sexualidade — debates contemporâneos..........215
Ochy Curiel
Heterossexualismo
e o sistema de género colonial/moderno..................................239
Maria Lugones
Vivendo com o sofrimento............................................................271
Judith Butler
Quatro teses sobre feminismo pós-humano.............................277
Rosi Braidotti
Posfácio..............................................................................................309
Aline Ferreira
SOBRE AS AUTORAS.........................................................................313
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Prefácio
Gisberta: uma vida que conta
Maria Manuel Baptista
Faz 13 anos, no dia 22 de fevereiro de 2019, que Gisberta foi
assassinada.
Em 2006, Gisberta Salce Júnior morreu dentro de um buraco,
num prédio abandonado, após ter sido torturada durante três dias
por um grupo de adolescentes, no Porto, em Portugal. Gisberta
era uma mulher transexual que emigrou do Brasil para Portugal
nos anos 80 do século XX. Num artigo que publicámos em 2016
(Baptista, Himmel, 2016), explorámos a cobertura mediática da
sua morte como um caso ilustrativo de representações sociais de
género, tendo chegado a duas conclusões principais: por um lado,
mesmo aqueles que constituem comunidades de apoio e reconheci-
mento, perpetuam discursos binários em relação ao género, en-
quanto, por outro lado, a única possibilidade aparente de huma -
nizar e transcender essas normas é materializada na performance
e na produção artística, ao permitir uma conexão tendencialmente
empática e emocional com o "sujeito" enquanto ser humano, em
vez de o tratar como um objeto representado a partir do conceito
de transgressão. A análise de artigos de jornal sobre Gisberta re-
velou que há uma forte representação social binária de género,
constituída rigidamente por polos estáticos em torno dos conceitos
de feminino e masculino. Como tal, a representação social daqueles
indivíduos que transgridem este esquema binário, incorporando
performances alternativas de género, como foi o caso de Gisberta,
parece ter como efeito reduzir o ser humano à sua transgressão,
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MARIAMANUELBAPTISTA
neste caso, à sua sexualidade transgressora. Naquele estudo, foram
analisados diferentes discursos que sobre Gisberta foram então
produzidos no espaço público: media, tribunais, adolescentes en-
volvidos no crime, ativistas LGTB e artistas. Através dessa análise,
foi possível concluir que essas normas binárias são muito profundas
e estão culturalmente naturalizadas, na medida em que atravessam
mesmo os discursos daqueles que tendem a falar em nome das
pessoas transsexuais, de tal forma que parece quase impossível
escapar deles. Detetamos apenas uma importante exceção: a da
expressão artística, em forma quer de performance poética, quer
musical ou teatral. Com efeito, na investigação que realizámos en-
tão, este surgiu como o único topos a partir do qual o verdadeiro
reconhecimento de Gisberta como, simplesmente, um ser humano,
parece ser alcançado (enquanto humano sexuado, mas que não se
reduz à sua sexualidade). Este caso tornou-se para nós um exemplo
extremo da necessidade de refletir sobre as normas e performances
de género que culturalmente construímos para pensar os seres
humanos e as suas identidades, de modo a poder abrir espaço para
o reconhecimento da dignidade de todos os indivíduos enquanto
membros da espécie humana.
Com efeito, como afirma Judith Butler, no texto que abre este
livro e que bem podia referir-se ao caso do assassinato de Gisberta,
uma perda pode parecer totalmente pessoal, privada, isolada,
mas também pode fornecer um conceito inesperado de comuni-
dade política, até mesmo uma premonição de uma fonte de não-
-violência. Se a vida que é minha não é original ou finalmente
separável da tua, então o nós que somos não é apenas uma com-
binação de tu e eu e de todos os outros, mas um conjunto de re-
lações de interdependência e paixão. E não podemos negá-las
ou destruí-las sem refutar algo fundamental sobre as condições
sociais da nossa vida. (Butler, 2018b, p. 275).
Num outro texto que escolhemos para integrar esta coletânea
de estudos em Género e Performance em língua portuguesa, de
modo a introduzir uma reflexão sobre uma temática que ainda
está a dar os primeiros passos entre nós, Butler complementa:
Isto significa que cada um de nós é constituído, politicamente,
em parte em virtude da vulnerabilidade social dos nossos corpos
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GISBERTA: UMAVIDAQUECONTA
- como um local de desejo e vulnerabilidade física, como um local
de uma publicidade ao mesmo tempo assertiva e exposta. A
perda e a vulnerabilidade parecem derivar do facto de sermos
corpos socialmente constituídos, vinculados a outros, correndo
o risco de perder esses vínculos, expostos a outros, em risco de
violência em virtude dessa exposição. (Butler, 2018a, p. 22).
Com efeito, a questão do género está no centro das questões
relativas à identidade, devido à “função paradigmática da dife-
rença sexual em relação a outros eixos de exclusão” (Hall, 1996,
p. 15). As normas de género e os discursos hegemónicos prevale-
centes baseiam-se na extrema polarização entre feminino e mas-
culino. Tais normas e discursos foram e continuam a ser
contestados tanto pelas práticas performativas do género, que de-
safiam essas normas, não se conformando a elas, como, também,
teoricamente.
Dito de outra forma, e nas palavras de Butler, “como um modo
de relação, nem o género nem a sexualidade são exatamente uma
possessão, mas sim um modo de ser desapossado, um modo de ser
para outro ou em virtude de outro” (Butler, 2018a, p. 26).
O caso de Gisberta ilustra-o na perfeição.
O corpo de Gisberta Salce Júnior, de 46 anos, foi encontrado
num poço, na zona do Campo 24 de Agosto, na cidade do Porto,
Portugal. Ela foi violentamente torturada, durante três dias, por
um grupo de 14 adolescentes, de 13 a 16 anos, tendo sido depois
lançada para dentro de um poço no qual acabou por morrer afo-
gada. Um dos rapazes acabou por confessar os factos a um pro-
fessor, que alertou as autoridades. De acordo com os media,
durante o julgamento, os adolescentes alegaram que cometeram
os atos por “diversão” e não tinham intenção de assassiná-la.
A compreensão destes eventos poderá, com efeito, encontrar-se
bem mais fundo, num outro lugar:
O corpo implica mortalidade, vulnerabilidade, agência: a pele
e a carne expõem-nos ao olhar dos outros, mas também ao
toque, e à violência, e os corpos põem-nos também em risco de
se tornarem a agência e o instrumento de tudo isto. Embora lu-
temos por direitos sobre os nossos próprios corpos, os próprios
corpos pelos quais lutamos não são apenas nossos. O corpo tem
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MARIAMANUELBAPTISTA
a sua dimensão invariavelmente pública. Constituído como um
fenómeno social na esfera pública, o meu corpo é e não é meu.
Dado desde o início ao mundo dos outros, carrega a sua marca,
é formado dentro do cadinho da vida social; só mais tarde, e
com alguma incerteza, reivindico o meu corpo como meu, se é
que de facto alguma vez o faço. (Butler, 2018a, p. 28).
Os adolescentes que assassinaram Gisberta estavam institu-
cionalizados em centros para jovens em risco (a maioria deles nas
Oficinas de S. José, uma instituição católica). Seis deles foram
condenados por delitos qualificados contra a integridade física e
tentativa de profanação de cadáver e condenados à instituciona-
lização num centro educacional semi-aberto por 13 meses. Cinco
menores foram condenados por ofensas à integridade física, com
uma sentença de 11 meses, e dois foram condenados por omissão
e a 12 meses de reeducação. A família de Gisberta criticou as sen-
tenças por não serem suficientemente fortes. O caso foi também
seguido de uma série de eventos relativos à instituição das Ofici-
nas de S. José, tendo sido despedidos alguns funcionários que tes-
temunharam e criticaram a instituição e o diretor foi encontrado
morto, suspeitando-se de suicídio.
A história foi amplamente relatada nos media, e continuou
na agenda noticiosa em momentos posteriores como o julgamento
e a propósito de outros eventos em relação à instituição católica
que acolhia os menores, marchas LGTB e protestos, e ainda o lan-
çamento de uma música de um cantor famoso (Pedro Abrunhosa)
dedicada a Gisberta, bem como a apresentação de uma peça tea-
tral sobre o caso. Todos estes relatos apresentaram múltiplas
perspetivas, desde narrativas chocantes de relatórios policiais e
judiciais, até reflexões sobre a delinquência juvenil e o centro
onde os adolescentes se encontravam institucionalizados, bem
como a perspetiva dos ativistas LGTB, que, muitas vezes, criti-
caram o modo como os media retratavam Gisberta.
Embora muitas dessas perspetivas divergissem, identifica-
ram-se representações sociais hegemónicas: a representação bi-
nária de género formada por dois polos opostos: o masculino e o
feminino, e a consequente redução de Gisberta à sua (não) iden-
tidade de género. Com efeito, Gisberta encontrava-se num lugar
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