Table Of ContentPara Lisa Drew
“La Marseillaise”
(Hino nacional francês)
Allons enfants de la Patrie
Le jour de gloire est arrivé.
Contre nous, de la tyrannie, L’Etendart sanglant est levé. [bis] Entendez-vous,
dans nos campagnes Mugir ces féroces soldats?
Ils viennent jusque dans vos bras
Egorger vos fils, vos compagnes.
Aux armes, citoyens! Formez vos bataillons; Marchons, marchons!
Qu’un sang impur abreuve à nos sillons.
Filhos da Pátria, marchemos1
O dia da glória chegou!
Contra nós, o estandarte ensangüentado da tirania ergueu-se. [bis]
Ouvis nos campos rugir
esses ferozes soldados?
Vêm eles até vós
degolar vossos filhos e vossas mulheres! Às armas, cidadãos! Formai os
batalhões! Marchemos, marchemos!
Nossa terra do sangue impuro se saciará!
O abismo nos contempla de volta.
Túmulo de Napoleão, Hôtel des Invalides, Paris
© Giraudon / Art Resource, NY
Frisson
Visite aquele chalé em Berchtesgaden, no sul da Baviera. Apesar do
panorama bucólico, você não sentirá senão repugnância por seu mais famoso
morador nazista. Vá à Praça Vermelha. É possível que a Revolução de Outubro
lhe provoque alguma palpitação, mas sentirá apenas ódio do homem que a traiu,
com a tirania assassina que exerceu sobre o império soviético de 1923 a 1953.
Indo ao memorial ao estilo de mausoléu ao rei Luís XVI e à rainha Maria
Antonieta erguido no 8o arrondissement de Paris, talvez sinta reverência por um
passado rico, mas ele parecerá irrecuperavelmente distante e remoto. Quanto ao
Panthéon Republicano dedicado aos “grandes homens” da França, o lugar o
desapontará por seu vazio espiritual — é sem dúvida mais vazio que a igreja
paroquial de Sainte-Geneviève cujo lugar ocupou.
Agora visite Les Invalides — complexo que reúne um hospital para
veteranos, um museu do exército e uma grande igreja, na margem esquerda do
Sena, em Paris. Ali jaz Napoleão Bonaparte, num sarcófago gigantesco, pousado
sobre um alto pedestal que emerge das profundezas da igreja de Saint-Louis. O
túmulo situa-se exatamente em baixo da cúpula grandiosa, de mais de 60m de
altura. O visitante o contempla de cima, apoiado numa balaustrada de mármore.
Visitar Les Invalides é como visitar o Lincoln Memorial: em meio ao
mármore fúnebre e ao espaço geométrico abafado, há algo vivo. Reverenciamos
Lincoln, lamentamos não o ter conhecido ou ao menos ouvido, orgulhamonos
por ser parte da república que o gerou, e, se nascemos ao norte da linha Mason-
Dixon, de descender dos que lutaram por ele.
Quando visitamos le tombeau de l’Empereur, porém, há alguma coisa de
diferente. Aqui, o abismo nos contempla de volta.
O sarcófago imperial é uma suntuosa laje de pórfiro — dura e cara rocha
cristalina — avermelhada, esculpida como uma onda, uma forma recortada de
um bloco contínuo: densa e pesada, congelada na pedra e não obstante a
encapelar-se eternamente. A pedra tem uma cor-de-carne inesperada, quase
chocante, não os costumeiros branco ou preto, o que a relegaria mais facilmente
a um passado morto. É lívida e viva, da cor de um peito esfolado numa autópsia,
a expor um coração cru, ainda pulsante. O túmulo é notavelmente moderno para
a época em que foi construído, a década de 1850, completamente impessoal,
nada pitoresco; não tem nenhuma história a contar ou simbolismo a comunicar.
Não é nem mesmo caracteristicamente francês, mais parecendo o monolito de
2001 de Stanley Kubrick — imóvel e poderoso, consciente e vivo, domina o
impressionante cenário eclesiástico e militar em que se encontra. Esquecemo-nos
de que estamos numa igreja e num hospital, e, apesar da presença de todas as
bandeiras de batalha, troféus que o guia Michelin nos avisou que veríamos,
chegamos a esquecer que se trata de um estabelecimento militar.
Se a grande presença não está retratada, é porque o arquiteto do túmulo,
Louis-Tullis Visconti (1791-1853), tinha perfeita consciência da insignificância
da caracterização nesse caso. Diferentemente de historiadores e escritores, o
arquiteto satisfez-se em evocar, sem tentar descrever ou (menos ainda) explicar,
e nesse aspecto logrou seu intento com uma força nietzschiana: o poder, a
vontade, a ameaça, a emoção estão todos aqui. Pois como descrever ou explicar
esse homem, embora isso tenha sido incessantemente tentado — e vá ser tentado
mais uma vez nas páginas deste livro? Como caracterizar Napoleão? Como
Hitler? Como Prometeu? Ambas as analogias, e até o próprio Jesus Cristo, foram
invocadas, mas o homem que jaz nessa tumba está muito distante de qualquer
deles. Melhor seria, talvez, dizer que Napoleão é um personagem, como Hamlet;
e, como Hamlet, um enigma — repleto de contradições, sublime e vulgar. Somos
impelidos em direções opostas.
Em contraste com o Lincoln Memorial, esse túmulo não desperta nenhum
pesar ou dor. O visitante não sente a garganta embargada pela emoção, nem o
coração arrebatado por grandes ambições. O que sente é o espírito perturbado
mas inteiramente alerta, em reação ao que se esconde lá em baixo — igualmente
ameaçador e palpitante, com qualidades esfíngicas de bem e mal e de mistério.
Acima de tudo, o que se faz presente ali é o senso aterrorizante da possibilidade
humana, o que é diferente de esperança. O assombro desse túmulo transforma-se
num corcel que nos transportará para um futuro desconhecido, ainda que ele só
valha cem dias.
A França não é capaz de pensar nele sem tremer, e em seu tremor, por mais
que isso a incomode, tem medo dele, medo da saudade que ainda sente dele.
ANDRÉ SUARÈS2
LIVRO I
Allons enfants de la Patrie
Napoleone di Buonaparte
A glória de um homem não lhe advém do passado, começa com ele. A fonte do Nilo só é
conhecida por um punhado de etíopes, mas quem desconhece sua foz?
CHATEAUBRIAND
A ilha destronada: a Córsega no século XVIII
Que há, no mundo todo, de tão nu, tão abrupto quanto esta rocha?
SÊNECA, NO EXÍLIO
Na verdade, são muito poucas as coisas que precisamos saber sobre a
Córsega da infância de Napoleão. Quando ele a deixou às pressas no verão de
1793, foi para sempre, nunca tendo olhado para trás — na verdade, no final da
vida qualificou a Córsega de “ruinosa para a França” —, pelo que os
nacionalistas corsos nunca o perdoaram. Apesar disso, tons corsos banham toda
a sua pessoa e sua vida, assim como a famosa idée fixe dá forma à totalidade da
Symphonie fantastique de Hector Berlioz, e, se vamos tentar conhecer Napoleão,
devemos tentar tanger essas cordas.
No século XVIII (e ainda hoje), a Córsega certamente não era lugar para
medrosos ou indecisos; apavorava os anêmicos, horrorizava os indolentes, e
deixava os ambivalentes, bem, inseguros. A île de Corse exigia do visitante certa
tolerância ao desconforto inabitual em paragens européias ao norte do paralelo
35. Ajudava se ele fosse versado em contrastes, um colecionador de paisagens e
idéias, um amante de emoções fortes e de algum perigo, um admirador de
paisagens com uma vegetação inóspita, quilômetros de estradas estreitas e
esburacadas pontuadas por curvas fechadas, demarcadas por íngremes rochedos
calcários. O emaranhado do maqui recuava apenas provisória e
desafiadoramente ante o intruso humano. Partes da Suíça tinham a mesma
intratabilidade, quietude e beleza da Córsega, a mesma impressionante mistura
de céu, terra e água elementares; mas faltava-lhes o fogo.
O fogo corso ardia no século XVIII como arde no XXI. Não se paga entrada
para desfrutar da vista soberana da Rocha do Leão em Roccapina, o único preço
a pagar é o medo da morte que nos invade quando lá chegamos. Essa escultura
natural, ali desde os tempos neolíticos, é fustigada, centenas de metros abaixo,
pela rebentação de um Mediterrâneo cobalto; o sol poente pode incandescer tão
intensamente que, por um instante, o vemos como uma estrela morrendo, e essa
rocha, como o Armagedom. O visitante demora-se um pouco; não irá embora
calmo e confiante, mas pensativo e grato por estar vivo. Em suma, não imaginará
prontamente a mão branca e aristocrata de um Edward Gibbon pegando da pena
a uma mesa numa villa revestida de estuque caiado, sobranceira ao porto de
Bonifacio, para dali contemplar com equanimidade os conflitos hiperbólicos do
Império Romano declinante. Não, no tempo de Sêneca, como sempre desde
então, a Córsega não promete nenhuma equanimidade. O próprio Rousseau, o
grande caçador dos bons selvagens, pensou muito em se mudar para lá, mas não
teve coragem. Tente Lausanne, senhor Gibbon.
A Córsega sempre impressionou o forasteiro muito mais do que se deixou
impressionar por ele. A ilha faz lembrar a observação de C.S. Forester sobre o
contratorpedeiro: “Sua missão era dar, não receber.” Assim foi com a Córsega.
As pessoas dali oriundas que tiveram grande impacto nas sociedades “mães” de
Gênova, da Inglaterra e sobretudo da França, agora em seu 236o ano de
possessão, destacam-se na maior parte das línguas cultas. Um francês sorriria, é
claro, se você lhe pedisse para “citar um corso que afetou profundamente a
França”, mas, mesmo que você se apressasse a acrescentar “isto é, outro que não
aquele”, ele ainda poderia desfiar nomes: Paoli, Pozzo di Borgo, Sebastiani,
Piétri, Pasqua — todos eles políticos. Com algum esforço, conseguiria lembrar
alguns nomes nas artes (o filósofo J.T. Desanti; os cantores Tino Rossi e César
Vezzani; a bailarina Pietragalla), mas o saldo é claro: o principal produto que a
Córsega exportou para a França não foi azeite, vinho, nem castanhas; foram
políticos, entre os quais uma vasta multidão de funcionários públicos graduados,
quase sempre com nítido viés autoritário. Por outro lado, peça a um corso,
instruído ou não, que mencione um francês (ou mesmo um italiano) que tenha
influenciado sua ilha de maneira duradoura, que tenha sido conhecido e estimado
ali tal como os nomes acima afetaram a França e foram por ela recebidos —
decertoelefaráumlongosilêncio.Porfim,talvezresponda“DeGaulle”,ou,se for
sincero, “Pétain”. Uma lista curta para 236 anos.
Repetidamente conquistada e colonizada desde os tempos clássicos, a partir
de meados do século XVI a Córsega esteve sob permanente domínio de Gênova.
A cidade-Estado republicana na costa oeste da Itália controlou as finanças da
ilha, fundou algumas cidades costeiras (inclusive Ajaccio) e ergueu ali aquelas
torres características que lhe dão um curioso quê histórico; apesar disso, de
modo geral os genoveses não tiveram grande influência sobre a Córsega ou seus
habitantes. No fim das contas, a história da ilha foi sempre a mesma: ela
pertence essencialmente a ela própria. As inúmeras rebeliões que ali se fizeram
nunca tiveram um desfecho feliz; terminaram em derrota, prisão, execução e
exílio. No século XVIII os corsos tentaram de novo: uma rebelião em 1729
desdobrou-se em revolução — a primeira, dizem eles, das “revoluções
democráticas” que deram ao século a sua fama nos tempos modernos. Um olhar
Description:Uma interpretação inédita sobre Napoleão Bonaparte, o mais famoso general e estadista da história moderna, esse livro é uma das mais relevantes contribuições ao estudo do tema nos últimos anos. Apoiado em ampla e bem documentada pesquisa, o historiador norte-americano Steven Englund faz uma