Gandhi: ambição nua

910 Pages·2012·2.58 MB·Portuguese

by  Jad Adams

Para Julie
Sumário
A Partição da Índia, 1947
África do Sul, 1893
Introdução
1 Infância e casamento
2 Lições londrinas
3 Aventuras em Natal
4 Desafio e castidade
5 O Exército dos Pobres
6 Ativista de aldeia
7 Despertando a Índia
8 A Marcha do Sal
9 Ícone mundial
10 Saiam da Índia
11 Partição e morte
12 Legado
Bibliografia
Glossário
Índice remissivo
A Partição da Índia, 1947
África do Sul, 1893
Introdução
“Minha vida é a minha mensagem”1
O acontecimento que mudou o mundo em 1930 foi registrado em todos os
jornais e meios de comunicação nacionais: num ato tempestivo, Gandhi
desafiara o Império Britânico ao pegar sal ainda não legalizado (sem o
recolhimento dos devidos impostos), ou seja, contrabandeado de seu próprio
país.2 Relatos informam como, então, ele se lavou no mar; fotografias da época
mostram o pequeno indivíduo, vestido de branco, contra o puro branco das
salinas, um símbolo de pureza desafiando o maior império que o mundo viera a
conhecer. Ao levantar os cristais brancos para que todos os vissem, a poetisa
nacionalista Sarojini Naidu gritou, para aclamação da multidão: “Salve,
libertador!”.
Como é normal nesses casos, a foto icônica é uma falsificação, uma criação
por parte de jornalistas, produtores de filmes e biógrafos aduladores. Realmente,
Gandhi foi para Dandi, mas as imagens e os relatos dessa sua visita foram fruto
da montagem de um cenário muito bem pensado e cuidadosamente preparado. A
famosa imagem mostra Gandhi, três dias depois de sua chegada, colhendo sal
perto de Bhimrad, a dez quilômetros da costa e a 25 quilômetros de Dandi.
Sarojini Naidu estava presente quando Gandhi chegou a Dandi, mas ela não
expressou o frequentemente referido e notório grito (o qual teria representado
para ela uma expressão decepcionantemente banal).3 O grande momento
fotográfico foi uma reencenação para as câmeras do evento que havia ocorrido
numa praia lamacenta onde o sal não era visível e, portanto, o ato era,
aparentemente, menos simbólico.
A realização de Gandhi não foi o desafio à lei ao apanhar o sal (os
camponeses o faziam constante e impunemente), mas foi o seu anúncio público
de que ele quebraria a lei, andando durante vinte e quatro dias para fazê-lo,
dando à mídia muito tempo para comentar e orquestrar sua cobertura.
Tanto seus colegas políticos quanto as autoridades britânicas, que não
quiseram fazer uma demonstração de força devido à insignificância do ato,
ficaram perplexos, pois nunca haviam considerado o sal como produto de alta
relevância. Mas Gandhi conhecia a importância do simbolismo. Ele era um
homem de grande espiritualidade, orava duas vezes por dia e murmurava
incessantemente o nome de Deus; o cuidado com a sua dieta incluía um
determinado número de grãos de uva a ser consumido. Mas muito mais
importante do que qualquer conhecimento espiritual era a sua consciência da
imagem. Sua estranha forma de se vestir refletia a maneira pela qual tanto se
esforçara para fazer de si mesmo a própria mensagem: a cartola e os adereços de
um advogado londrino, a camisa simples e o dhoti (tipo de calçola indiana) de
um simples camponês, as roupas caseiras daqueles que se recusavam a comprar
tecidos importados da Inglaterra. Finalmente, ao conseguir um exército de
adeptos trajados com vestuário feito em casa, ele apareceu com uma tanga, quase
nu. Essa foi a imagem que percorreu o mundo — um homem santo, quase nu,
contra um império. Ele tornou-se um ícone. Naquela época, somente Charlie
Chaplin e Adolf Hitler tinham conseguido o reconhecimento mundial apenas por
suas imagens, de maneira tal que todos sabiam o que eles representavam.
A vida de Gandhi foi o derradeiro desafio para um biógrafo, pois ela teve
muitas facetas, e, além disso, existe muita informação contemporânea a seu
respeito. Muitas pessoas demonstram dois aspectos de interesse em suas vidas.
Um líder nacional pode ter uma carreira política incandescente e uma fantástica
vida sexual, mas nada mais digno de ser comentado a seu respeito. Não é raro
encontrar reformistas sociais com um complexo relacionamento com
alimentação ou com religião; muitas pessoas famosas por suas realizações têm
uma vida familiar tumultuada. A vida política de Gandhi, sua vida espiritual, sua
vida familiar e sexual foram todas fascinantes; seu relacionamento com o
alimento poderia, por si só, preencher um livro inteiro.
Em todas essas áreas, o próprio testemunho de Gandhi ainda sobrevive, suas
obras totalizam cem volumes entre livros, artigos, cartas e discursos. Para alguns
personagens famosos, como Homero, não existe nenhuma informação biográfica
confiável; para outros, como Abraão, há pouca informação, enquanto para
Gandhi, há uma abundância de informações. Gandhi sabia a maneira pela qual
esse material seria usado e, por isso, ele dizia: “Minhas obras devem ser
cremadas com o meu corpo. O que realizei perdurará, mas não o que eu disse ou
escrevi”.4
Apesar de sua advertência, esta biografia baseia-se em fontes primárias, em
suas próprias obras e relatos de pessoas que lhe eram próximas. Dessas pessoas,
as mais importantes foram seu secretário, Mahadev Desai, entre 1917 e 1942,
que escreveu um diário de nove volumes, e o assistente de Desai, posteriormente
seu secretário principal, Pyarelal, que assistiu Gandhi de 1920 até a sua morte.
Junto com sua irmã Sushila Nayar, médica de Gandhi, Pyarelal escreveu uma
biografia de dez volumes. Todo outro material aqui utilizado foi extraído de
testemunhas oculares e, particularmente, de diários ou de relatos quase
contemporâneos, aos quais foi dada preferência em vez de posteriores
interpretações.
As duas autobiografias do próprio Gandhi, uma sobre a sua vida na década de
1920 e a outra sobre suas experiências na áfrica do Sul, são um guia para a
relativa importância que ele dava aos vários aspectos de sua vida. Assim, menos
ênfase deve ser colocada na lei e nas políticas, quando Gandhi era um estudante
em Londres, do que na sua dieta vegetariana, porque era essa dieta que mais o
obcecava. Na áfrica do Sul, a vida das comunidades ideais que ele estabelecera e
a sua própria castidade foram a parte mais importante de sua obra. A luta com o
governo sobre os direitos indianos foi o que ele fez, a luta com a sua própria
sexualidade foi o que ele era. Tal como muitos homens ambiciosos, Gandhi era
altamente sexuado: o interesse para o bió grafo é a maneira pela qual ele tentara
conter essa sexualidade e a forma pura pela qual ele conseguia escrever a esse
respeito.
Qualquer crédito dado às obras do próprio Gandhi abre imediatamente uma
questão de confiança: Será que ele disse a verdade? Sua autobiografia tem o
subtítulo de: A História de Minhas Experiências com a Verdade, mas em que
tipo de verdade ele acreditava? Qualquer político poderia dizer que teve
experiências com a verdade, mas isso seria um eufemismo para mentir.
Há uma evidência de que a incompetência de Gandhi demonstrada no início
de sua vida pública foi exagerada, dando uma impressão mais dramática aos seus
clamorosos sucessos posteriores. Alguns historiadores também acharam muito
exagerada a sua contribuição às políticas da áfrica do Sul. Certamente, seus
adeptos ficaram decepcionados depois que seus supostos acordos com o governo
sul-africano foram desfeitos. Entretanto, não é a respeito desses assuntos ou de
suas interpretações que a verdadeira questão da veracidade de Gandhi emerge. A
verdade de Gandhi é seletiva, não tanto pelo que ele queira ocultar, mas pelo que